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quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Reforma Sanitária 35 anos: renovar a política preservando o interesse público na saúde
O processo de crescimento econômico brasileiro concentra ainda mais o capital, disputado por grupos privados e frações de mercado, cujos objetivos são antagônicos ao interesse publico. A política de desenvolvimento nacional atende a pressões atreladas a interesses privados sem compromisso com a universalidade dos direitos sociais, a preservação ambiental e a justiça social.
Merecem destaque os avanços na redução das desigualdades sociais e na diminuição da pobreza ocorridas nos últimos anos. Quando as classes sociais conquistam mudanças por lutas políticas para melhoria de condições de vida, o resultado é o acumulo social de consciência política pelos direitos coletivos. As políticas governamentais de distribuição de renda ocasionaram mudanças, mas o foco ficou restrito a ampliação da capacidade de consumo dos mais pobres.
Para o mercado, o direito ao consumo se, sobrepõe ao valor coletivo dos direitos sociais, prevalecendo os interesses individuais e esvaziando o sentido coletivo da “Política” na sociedade. O modelo de desenvolvimento socialmente justo se baseia na universalização dos direitos sociais e não apenas na idéia de ampliação do consumo, que é objetivo do mercado. As disputas entre os interesses públicos e do mercado dependerão da correlação destas forças políticas.
A História mostra que a conquista dos direitos sociais universais é fruto das lutas democráticas e populares, nunca origina da elite política ou do Estado. A democracia precisa ser resgatada, pois as instituições democráticas brasileiras, incluindo os partidos políticos, são hoje reféns da conquista ou da manutenção do poder. Os programas dos partidos políticos não se comprometem com a defesa de idéias e projetos para atender as necessidades e interesses coletivos. Esta situação tem graves repercussões sobre os direitos sociais e de cidadania. Como exemplo, a conhecida pressão religiosa contra a legalização do aborto, pela criação de comunidades terapêuticas pra tratamento da dependência química, ou em políticas distorcidas pelos interesses dos grupos financiadores das campanhas políticas.
A situação atual da democracia participativa reflete a despolitização da sociedade e é marcada pelo corporativismo, cooptação e menos pela defesa dos interesses públicos. Na saúde, o Movimento da Reforma Sanitária sempre depositou e deposita ainda grande expectativa na participação social na luta e conquista da saúde como direito social, mas é necessário avaliar os seus reais avanços e retrocessos nas instancias dos conselhos e conferências, que, muitas vezes colocam os interesses privados ou de grupos específicos acima do interesse público. A baixa capacidade dos serviços do Estado em atender às necessidades e demandas da sociedade se agrava a cada dia. Entre as complexas causas e conflitos de interesses relacionados ao problema, destaca-se o tendencioso pacto federativo, com recursos e decisões altamente centralizadas, com transferência de responsabilidades e atribuições para os municípios e estados.
A reforma tributária que poderia corrigir essa distorção é continuamente adiada e protelada pelo interesse de manutenção da governabilidade, imobilizada pelos grupos de interesses que patrocinam e sustentam o governo. O mesmo ocorre com a reforma do Estado, hoje apoiado em estrutura burocrática, centralizada e centralizadora. A ineficiência do Estado é justificativa frequente para a transferência de responsabilidades para agentes privados, que atuam de acordo aos seus interesses, frente a pouca capacidade regulatória que deveria preservar o interesse público. Na mesma perspectiva, também vem sendo adiada a reforma política que tende à construção de um grande acordo com acomodação de todos os interesses dos diversos grupos envolvidos.
Para agravar, o Governo reforça a imagem da ineficiência do setor público, ao valorizar as parcerias público-privado nos seus programas, para transferir tecnologias para o aperfeiçoamento da gestão pública, Fica no ar a preservação dos interesses públicos que deveria prevalecer na gestão pública no lugar do gerencialismo e mercantilismo típicos do setor privado. Os avanços da Reforma Sanitária, especialmente no componente dos resultados da implantação do SUS, não foram poucos e devem ser celebrados como conquistas sociais. A universalidade da cobertura dos serviços ainda não é fato, mas efetivamente houve uma ampliação do acesso aos serviços de saúde. Entretanto prevalecem as dificuldades de acesso, a baixa qualidade dos serviços, a fragmentação da oferta, e não há integralidade na atenção. O insuficiente financiamento público da saúde tem sacrificado o sistema, penalizando os municípios e a persistência desta condição mostra a pouca prioridade governamental para a saúde publica.
A diminuição progressiva do financiamento público da saúde, em especial no nível federal com retração progressiva, ocasiona um ônus real para os mais frágeis, ou seja, os municípios e milhões de famílias brasileiras. É impossível um efetivo sistema público de saúde, universal e integral com o atual gasto anual per capita de US$ 340 , quando, o gasto público per capita em sistemas europeus com diretrizes similares, é de pelo menos US$ 1000 por habitante. O retrocesso nas bases constitucionais do direito a saúde fica exposto pelo grande crescimento do mercado privado de saúde. Os planos de saúde prosperam por um processo predatório do dinheiro público. Dentre os mecanismos que favorecem e convivem hoje passivamente, destacam-se: as renúncias fiscais tanto para empresas que contratam planos para seus empregados como na renúncia fiscal para contribuintes individuais; o não pagamento do ressarcimento de serviços prestados pelo SUS para beneficiários de planos ou na transferência de pacientes onerosos para o SUS .
O gasto de dinheiro público para pagamento de planos privados para servidores públicos, representa uma contradição e um efetivo subsídio público aos planos privados de saúde. É necessário apontar essas distorções e, de forma republicana, garantir que o dinheiro público não seja usado para violar o interesse público. O plano de saúde é usado como forma de controle das empresas sobre o trabalhador, transformado-o em refém do patrão, portador da chave para o acesso a atenção medica. Por um lado os planos são usados como moeda de troca nas negociações com sindicatos, por outro, as empresas negociam com os planos de saúde a melhor maneira de descartar os empregados que oneram o plano.
É importante valorizar os esforços atuais em instituir normativas necessárias orientar o funcionamento do SUS. Mas é preocupante a presença recorrente de propostas baseadas no conceito de "padrões de integralidade", ou seja, que o município ofereça o que “puder” e não o que a população “precisa”. A proposta não é nova e sua retomada pode aprofundar as desigualdades na oferta e acesso aos serviços. Alem disso fere o principio da integralidade. Nesse contexto de conflitos de interesses dissociados dos interesses públicos, a persistência deste cenário reduz a possibilidade de sobrevivência, consolidação e legitimação da Reforma Sanitária nos moldes de sua concepção ampliada fundamentada na idéia inicial de saúde , bem estar e de seguridade social. e base do desenvolvimento social.
Pelo lado mais especifico da política setorial de assistência a saúde, fica mais distante a consolidação do SUS orientado pelos princípios constitucionais, ou seja, operado por rede de serviços públicos com complementaridade assegurada pelo uso racional dos serviços privados, garantindo a universalidade, qualidade e integralidade. Os interesses privados e de mercado apostaram no SUS que adere aos seus objetivos: de baixa qualidade, ineficiente e destinado para os mais pobres, É necessário debater sobre o desvio dos rumos do SUS para avaliar possibilidades de retomada do projeto político do direito universal à saúde. Para isso é imprescindível considerar:
• A prevalência dos interesses privados na base do projeto de desenvolvimento nacional em curso e a descaracterização da Saúde como uma Política de Estado com baixo investimento publico;
• A mercantilização e financeirização do setor que tem transformado a saúde em um dos campos mais lucrativos para investimento do capital financeiro e que induz o consumo de procedimentos, medicamentos e de Serviços Auxiliares de Diagnóstico e Tratamento (SADT);
• A exígua capacidade regulatória do Estado perante o setor privado, tanto da indústria, na incorporação tecnológica, como no mercado dos planos assistenciais ou mesmo na determinação dos preços para serviços e procedimentos. A regulação realizada atualmente valoriza o sentido cartorial quando deveriam garantir efetivamente a primazia do interesse público sobre os privados.
• O crescimento dos planos e seguros de saúde subsidiados com recursos públicos e a hegemonia do setor privado no mercado da oferta de serviços de média e alta complexidade,
• As sucessivas políticas e programas governamentais de saúde focados na fragmentação da assistência e apelos do marketing político, reformas administrativas de baixo impacto e especialmente a limitação resultante do subfinanciamento persistente;
Nessa conjuntura é pertinente retomar a idéia-lema do CEBES que situa a saúde como questão democrática "Saúde é democracia. Democracia é Saúde". Revisitar os direitos sociais e defender a saúde universal são caminhos obrigatórios. É preciso mudar a correlação de forcas políticas e fazer prevalecer os interesses públicos nas decisões sobre desenvolvimento econômico e social garantindo a democratização da sociedade e os direitos sociais. O momento da realidade nacional e do próprio setor de saúde, exige a mobilização e intervenção coletiva, articulada e persistente que recupere e renove os objetivos da Política e do Movimento de Reforma Sanitária, atualizando a agenda, sob a égide das conquistas constitucionais e analisando o projeto de desenvolvimento em forças e mobilização, com vistas ao desgaste da hegemonia atual e conseqüentemente, do seu modelo de saúde. No contexto mais amplo da ação política em defesa do direito a saúde, destacam se as seguintes pautas:
• Enfrentamento político e ideológico, no sentido de conhecer e denunciar as relações existentes entre os interesses públicos e privados,
• Promover o conhecimento, divulgação, transparência e controle dos fluxos de recursos públicos para setor privado.
• Ampliação da capacidade de regulação do Estado, seja do mercado de planos de saúde, seja na intervenção sobre a incorporação tecnológica ou na determinação de preços para serviços e procedimentos.
• Regulação e fiscalização efetiva, viabilizando o ressarcimento dos serviços do SUS prestados a beneficiários de planos de saúde e o efetivo respeito aos direitos dos usuários de planos, que sofrem constrangimentos de diversas ordens.
• Regular de fato e superar o atual sentido cartorial das agências e garantir efetivamente a primazia do interesse público sobre os interesses privados.
• Redução progressiva de benefícios fiscais que representam subsídio público ao consumo de planos privados de saúde, par e passo com o aumento do financiamento público da saúde, em especial no nível federal, cuja retração histórica vem penalizando a esfera municipal e milhões de famílias brasileiras.
• Mobilizar a população contra a Desvinculação dos Recursos da União (DRU) assegurar o adequado financiamento setorial garantindo a destinação de pelo menos 10% da Renda Bruta da União para o orçamento da saúde e aprovar, sancionar e implantar a PEC 29
• Combate ao discurso simplista que reduz o problema da qualidade do SUS aos reconhecidos problema de gestão e descarta os efeitos reais e concretos do baixo financiamento público.
• Maior aproximação da população com o projeto do SUS, que necessariamente passa pelo aumento da capacidade do sistema de atender de forma efetiva e com qualidade as necessidades e demandas dessa população.
• Reversão da tendência atual de privatização dos serviços públicos de saúde por meio de diversas estratégias desde a valorização de “parceiros estratégicos” privados, das relações “filantropistas”, da adoção das OSSs e OSCIPs. Reverter esta tendência significa apostar nas diretrizes constitucionais de gestão única do sistema único, de prioridade para a rede dos serviços públicos e caráter estratégico complementar dos serviços privados.
• Atuação contra a precarização do trabalho em saúde, que ocorre por meio de OSSs, OSCIPs, cooperativas, uso indiscriminado de contratações temporárias e emergenciais ou comissionadas, que afetam negativamente a qualidade dos serviços prestados e conduz os trabalhadores de saúde a defesa de projetos corporativos distantes dos interesses coletivos que orientam a Reforma Sanitária e o SUS.
• Pela dignidade, compromisso e qualidade dos trabalhadores da saúde que precisam de políticas especificas que envolvam a criação das carreiras públicas;
• Pela qualificação e aperfeiçoamento da gestão e gerencia do sistema, com planejamento de metas sanitárias e definição de estratégias de execução dos planos e acompanhamento que possibilitem uma política consistente e adequadas as necessidades da população.
• Pelo compromisso dos que defendem o direito a saúde assumirem o desafio de revistarem criticamente suas analises e atualizar o debate e a agenda política. No entanto isso deve ser realizado sem afastamento das bases constitucionais que são comprometidas com os interesses públicos e com a matriz conceitual e política da saúde coletiva. Estas bases preconizam um modelo de desenvolvimento justo e igualitário com intervenções sobre diversos setores identificados com questões estruturantes que são os determinantes sociais, das condições de vida, das desigualdades e iniqüidades sociais e de saúde.
Fonte: http://www.cebes.org.br
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