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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O capitalismo e o derretimento das geleiras

publicado 26/01/2017

O aquecimento global se tornou um problema estrutural que exige uma mudança do paradigma vigente

Em seu livro The Shock Doctrine, Naomi Klein argumenta que nas últimas quatro décadas o interesse das grandes corporações explorou sistematicamente as várias formas de crise, tentando impor políticas que enriquecem uma pequena elite – suspendendo regulações, cortando gastos sociais, e forçando privatizações em grande escala.

Associadas a governos retoricamente democráticos, as grandes corporações têm usado o pretexto da crise para a repressão sobre liberdades civis e violações de direitos humanos. Torna-se urgente recuperar as democracias da influência corrosiva da associação entre o grande capital e os Estados associados. Mas dentre o conjunto de crises que o mundo enfrenta hoje, a crise ambiental é das mais graves.

Os efeitos nocivos para a saúde humana por conta das mudanças no ambiente são muitas e graves: as mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, a degradação dos solos, a escassez de água, a sobreexploração da pesca e da perda de biodiversidade, o acúmulo de lixo tóxico, inclusive resíduos nucleares, a redução das florestas e a poluição dos rios, as secas mais longas em várias partes do mundo, representam um sério desafio para a humanidade.

Naomi Klein em seu livro mais recente nos diz que temos de esquecer tudo que sabemos sobre o aquecimento global, pois segundo ela, a verdade realmente inconveniente é que não se trata de carbono, mas de capitalismo.

No final de 2016 o jornal francês Le Monde publicou uma reportagem preocupante, que vem se somar a notícias anteriores de especialistas, chamando a atenção das autoridades mundiais sobre a gravidade que representa o degelo do Ártico e de seus efeitos destrutivos para a vida no planeta.

Tudo isto em um momento onde o presidente eleito dos Estados Unidos da América, tido como um cético com relação à crise ambiental, afirmou durante sua campanha eleitoral que iria anular o texto assinado por seu país quando da COP 21.

A declaração de Trump evidencia a fragilidade do Acordo de Paris, assinado em dezembro de 2015, que estabeleceu uma série de obrigações mitigadoras do impacto ambiental que já se faz sentir por toda parte.

As informações apresentadas por uma equipe da Nasa a partir de dados de satélites nos mostra a evolução da camada de gelo no mar Ártico, que atingiu sua menor cobertura em outubro de 2016. Mostra ainda uma tendência para sua diminuição e o quase desaparecimento dos gelos mais antigos e mais densos. O gráfico abaixo expõe a queda da extensão do campo de gelo, observado cotidianamente desde 1978.

Média mensal da extensão do mar gelado do Ártico. Para além do recorde de diminuição encontrado, é necessário observar que, na média, a extensão do campo glacial passou de 10 milhões de quilômetros quadrados para 6,5 milhões de quilômetros quadrados, isto em apenas 30 anos. A seguir, verificaremos em termos geográficos, um mapa desta massa de gelo perdida, desde sua média de 1980. Os traços em vermelho representam a extensa área glacial que desapareceu.

Extensão do Mar de Gelo perdida. Como afirma o Le Monde, o mapa põe em evidência a extensão das costas, na Sibéria, no Canadá, no norte do Alasca, mas também a costa Leste da Groenlândia, antes coberta de neve. A temperatura do mar, medida em outubro de 2016 também evidencia o aquecimento entre 1 e 4 graus centígrados a mais.

A calota polar da Groenlândia tem diminuído, o que contribui para a elevação do nível do mar planetário. São dois os fenômenos que atuam de forma conjugada: um fluxo direto de água para o oceano e a aceleração da perda de gelo e formação de icebergs.

Em artigo recente, Pierre Le Hir apresenta os dados produzidos pelo Instituto Metereológico Dinamarquês, em novembro de 2016, no qual as temperaturas diárias do ar no Ártico excederam de 15 a 20 ºC em média o período de 1958 a 2012. Níveis de -5ºC foram medidos em vez dos -25ºC habituais nesta estação do ano.

O que costumava ocorrer é que o campo glacial do Ártico, após atingir seu mínimo de gelo em setembro, se reconstituía lentamente. Em novembro de 2016, este campo cobria uma superfície de 8,73 milhões de quilômetros quadrados contra um pouco mais de 11 milhões de quilômetros quadrados para o período 1981-2010.

Em escala planetária os últimos anos foram os mais quentes da história moderna, e o Ártico não está imune ao processo. Segundo a Organização Metereológica Mundial (OMM), o ano de 2016 deverá estabelecer um novo recorde com uma temperatura superior a 1,2 ºC àquela que existia no período pré-industrial.

Não bastasse todos estes efeitos perversos no Ártico, em maio de 2014, cientistas da Nasa e da Universidade de Irvine na Califórnia revelaram que o derretimento de uma geleira na Antártida Ocidental, aproximadamente do tamanho da França, já aparecia como irreversível. O efeito, portanto, está ao norte e ao sul do planeta.

A revista Science divulgou em março de 2015, tendo por base estudos de satélites obtidos nos últimos 18 anos, que o volume da camada de gelo em alguns pontos do oeste da Antártida foi reduzido em 70% entre 2003 e 2012, sendo que a espessura da camada de gelo diminuiu em 18%.

Concluindo, são problemas estruturais que vêm se agravando e, somados à crise financeira, energética, alimentar, dos recursos hídricos e de ampliação das desigualdades acabam por conformar um fenômeno sistêmico que não será resolvido sem que países, organizações internacionais e sociedade civil mundial alterem o paradigma vigente.

Não é uma tarefa fácil. Karl Polanyi, em sua obra magna, já nos alertava que o mecanismo de mercado quando tornado o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural levaria ao desmoronamento da sociedade, pondo em perigo a própria sobrevivência do gênero humano sobre a terra.

Articular a noção de “bens comuns” (água, energia, alimentos, etc.) ao conceito de “bem comum da Humanidade”; criar uma consciência social coletiva outra, que configure uma mudança de lógica e uma ação que não atrelada a uma economia centrada no privado, no esgotamento dos recursos naturais e no individualismo; onde a questão da sustentabilidade não seja uma mera expressão retórica.

O capitalismo, através de uma insustentável exploração de recursos naturais e humanos no qual a civilização floresceu, agora corre o risco substancial, pelos efeitos da degradação, de não garantir o apoio da natureza à vida, no médio e longo prazo.

*Marcos Costa Lima é professor do departamento de Ciência Política da UFPE e coordenador do Instituto de Estudos da Ásia da mesma universidade. Integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

Fonte: Blog do GR-RI e Carta Capital

⁠⁠⁠Diversidade religiosa e visibilidade trans: questões de democracia

Por: Lídia Anjos e Paulo Victor Melo*

O mês de janeiro nos apresenta duas datas fundamentais para a garantia de uma sociedade democrática: o Dia Nacional de combate à intolerância religiosa, celebrado no dia 21, e o Dia Nacional da Visibilidade Trans, no dia 29.

Ainda que, à primeira vista, o combate à intolerância religiosa e a visilibade trans pareçam questões isoladas, a compreensão ampliada e crítica sobre direitos humanos evidencia que elas têm relação direta entre si e são partes de um objetivo maior: o respeito à diversidade.

E não adianta “fecharmos os olhos” ou “virarmos o rosto” como se estes fossem assuntos “dos outros”, afinal os dados estão aí para escancarar o quanto ainda não conseguimos lidar com as diferenças.

Vejamos. No que diz respeito à questão religiosa, o Disque 100 (serviço de denúncias de violações de Direitos Humanos do Governo Federal) já registrou mais de 700 casos de intolerância e discriminação contra religiões, especialmente as de matriz africana, como candomblé e umbanda. Em 2011, quando o Disque 100 passou a receber denúncias desse tipo, foram 15 registros; em 2012, foram 109; em 2013, 231; 149, em 2014; e 252, em 2015.

Se os dados oficiais já demonstram o crescimento da intolerância, importa ressaltar que a situação é ainda mais grave, já que muitos casos não são denunciados. Uma pesquisa realizada pela PUC-Rio, que ouviu lideranças de 847 terreiros, revelou que dentre 430 relatos de intolerância apenas 160 foram legalizados com notificação. E as manifestações são as mais diversas: agressões verbais, postagens em redes sociais, invasões de terreiros, quebra de símbolos sagrados, agressões físicas, etc., o que evidencia que há ainda um longo caminho para a garantia do estabelecido na Constituição Federal de 1988: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

No tocante à população trans, os dados são ainda mais alarmantes. Segundo pesquisa da organização não-governamental Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o pais que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo, com mais de 800 assassinatos entre 2008 e 2016. Não bastasse o alto índice estatístico, as formas dessas mortes revelam verdadeiros sinais de machismo e ódio exacerbado contra a imagem do ser feminino: em quase todos os casos, os corpos são expostos em lugares públicos, estão nuas, mutiladas, torturadas como ritos que propagam a mensagem de que ninguém ouse abdicar do ser superior masculino para um ser feminino inferior, que não “nasce inferior’, mas “torna-se inferior”.

Fundamental lembrar também que os assassinatos são a última – e mais odiosa – expressão da violência que travestis e transexuais sofrem em nosso país, porém há uma série de outros tipos de violência do cotidiano, praticadas individual ou coletivamente. São preconceitos e opressões vivenciadas na família, na escola, nos espaços de sociabilidade, em estabelecimentos comerciais, nas redes sociais e no mundo do trabalho. Sobre esse último aspecto, estimativas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) apontam menos de 10% da população trans no Brasil têm empregos formais registrados. Por outro lado, pouco mais de 90% de toda a população de travestis e mulheres trans é profissional do sexo. Sãotrabalhadoras, prostitutas, negras, periféricas e suas mortes não representam “apenas mortes trans”. Refletem ataques à dignidade humana e à democracia, entendida como o necessário respeito às múltiplas formas de sociabilidade e convivência humana.

Como dito no início do artigo, o Dia Nacional de combate à intolerância religiosa e o Dia Nacional da Visibilidade Trans nos colocam de frente para o espelho e mostram que somos, sim, um país marcado pelo desrespeito à diversidade e pelo preconceito e opressão contra os diferentes. Mas não basta ficarmos imóveis em frente ao espelho. É preciso (e urgente) ações ações articuladas nas diversas áreas – educação, saúde, cultura, assistência social, meios de comunicação, mundo do trabalho – que promovam a construção de uma sociedade efetivamente plural e diversa. Sem isso, não há democracia real.

Lídia Anjos, assistente social e Diretora de Direitos Humanos da SEMASC Aracaju

Paulo Victor Melo, jornalista e Coordenador de Promoção da Equidade da SEMASC Aracaju

Artigo publicado originalmente no jornal Cinform, em 23 de janeiro de 2017.